A Educação e os Escalões da Cultura.(páginas 16 a 22 do livro Ideário de Pedagogia e Educação (foto ao lado)
3.1. Os escalões da cultura.
A educação é um fenômeno cujos efeitos se estendem por fases ou etapas que constituem os momentos do processo cultural do indivíduo. A princípio é o espontâneo, correspondendo à vida pré-escolar. Depois, a sistematização e ordenação impostas pela escola como instituição organizada. Por fim, o homem, já preparado, para realizar o seu próprio destino.
Na fase informal e espontânea da vida, o indivíduo adquire as noções globalmente, aprende da natureza e por imitação. Corresponde ao período de influência marcante do lar. O discernimento e a compreensão dos bens e valores da cultura se esboçam, mercê das vivências infantis. A subsistência, o recreio, a religião, oferecem situações eventuais de cultura nesta etapa.
A educação sistemática formaliza e dá ordem a este estágio. Surgem as escolas e professores como seus responsáveis. Toda uma engrenagem administrativa se forma, destinada a cuidar da transmissão da cultura, num reconhecido esforço de continuidade educativa. Objetiva-se a formação cultural em massa, universal, gratuita, diversificada, à medida que se atingem os degraus mais elevados do nível médio. Aqui é imensa a procura de oportunidades, a despeito da inarticulação e pobreza dos sistemas vigentes.
O último escalão pressupõe o homem jovem ou adulto, capaz de, livremente, prosseguir se educando. A riqueza de oportunidades que a vida moderna oferece, os valores morais e espirituais, a ciência, a arte, a técnica, o progresso em suma, que distinguem a atual civilização, imprimem sentido a esta fase. E, dela, a universidade é a mais feliz e completa expressão.
Há, por conseguinte, necessidade de uma orientação técnica, na acepção educacional, para promover o acesso do homem aos vários estágios do seu desenvolvimento, não só individual, como sócio-cultural. As reflexões a seguir sugerem-nos idéias sobre o mundo da cultura e sua abrangência, a cultura e suas relações com a educação, a cultura dirigida e a cultura de massa.
3.2. O mundo da natureza e o mundo da cultura.
O homem nasce e vive num mundo da natureza e num mundo da cultura. Nasce, hoje, sobretudo num mundo técnico, porque no longo processo evolutivo da humanidade, a técnica precedeu a cultura. “Sem técnica não haveria cultura e, muito menos, civilização. A técnica é o que dá estrutura a tudo que o homem concebe e realiza, de qualquer ordem que seja”.[1]
A cultura não existe por si só, independentemente do homem. Tem que viver nele, fazer-se pessoal para subsistir, e desenvolver-se. Sem isto converter-se-ia em cultura morta. Deverá viver em sua época, projetando-se, também, através dos séculos e das gerações. Isto é uma das funções pedagógicas da cultura, através da educação.
Graças à cultura o homem aprende a dominar as técnicas, conhecer a verdade, sentir a beleza, amar o bem. Para tanto, precisa ser vivenciado, objetivado, “culturalizado”. Vivenciado, segundo uma formação cultural subjetiva. Objetivado, segundo uma formação cultural objetiva, real, através da educação. Unificando em si esta relação mútua, inseparável, de vivência e realidade.
Ao produto das atividades espirituais do homem se chama, portanto, de cultura. Assim, e segundo o pedagogo e filósofo culturalista, Eduard Spranger, o conteúdo filosófico-cultural da pedagogia é revelado pela “transparência científica da educação com o processo cultural propriamente dito”.[2]
A cultura estética, que procura desenvolver o belo, a arte e o bom gosto através das linguagens artísticas, pressupõe certa ação pedagógica e educativa do estado sobre os indivíduos e a comunidade. Daí, a pedagogia artística. Esta é um conjunto de procedimentos para se comunicar o gosto artístico ao educando. A sua principal tarefa é, portanto, mostrar como se educa a juventude na compreensão estética, iniciando-a, assim, na apreciação do belo. É arte-educação. Ou, segundo Aguaya, educação apreciativa.
A incorporeidade da cultura, de sentido subjetivo, torna fluidos, intangíveis e impalpáveis os produtos resultantes das ações programadas para sua consecução, eis que o estético situa-se no plano afetivo-sentimental da pessoa humana. Portanto, para sentir a arte, desfrutar o gozo do belo, deleitar-se com a harmonia dos sons e as expressões dos movimentos, com a combinação das cores, a sintonia dos traços e das formas, e com a elegância da expressão literária, o indivíduo deve desenvolver uma aprendizagem apreciativa desses valores, isto é, vivenciá-los através da educação na pré-escola, infância, adolescência e juventude.
Todavia, a natureza da cultura enquanto arte faz que ela seja subestimada e desvalorizada, vez que sendo os seus efeitos não quantificáveis em termos estatísticos, apresenta reduzida consistência em parâmetros de mensuração qualitativa de seus resultados.
A formação e desenvolvimento do bom gosto e apreciação do belo é o objeto básico da educação estética ou artística. Sua finalidade é dupla: a) despertar e desenvolver o espírito de criação e expressão artística; e, b) cultivar a sensibilidade para apreciação das artes, manifestadas através das várias linguagens artísticas. Vê-se aí uma finalidade criadora e uma receptora, ambas, porém, intimamente unidas e direcionadas no sentido do seu objetivo último.
3.3. A sociedade, a cultura e a educação.
A cultura, uma vez criada, tem uma existência própria. Porém, está sujeita à mudança e evolução da sociedade em que se desenvolve. Ela é um dos ingredientes da sociedade. Não há sociedade, por rudimentar que seja, sem cultura ou alguma forma de educação. A dúvida está em saber se é a sociedade ou a cultura que determina a educação, visto que não há incompatibilidade entre uma e outra nestas duas manifestações humanas. Ora, a cultura não pode existir em uma sociedade, independente dos indivíduos, dos homens que a criam, consolidam e transmitem-na. Sem esse processo a cultura morre. Daí porque uma das funções históricas da educação é facilitar a criação e transmissão da cultura na sociedade. “Ao estado cabe, basicamente, dar condições para que a cultura se desenvolva, e não fazer cultura ele mesmo”. Também seria preciso ficar claro que o apoio essencial do estado à cultura, chama-se educação. Por sermos, ainda, um povo deseducado é que a cultura aqui mexe com tão pouca gente. (Jornal do Brasil – Desafio da Cultura – Editorial – 17.04.90).
3.4. A “cultura das massas” e a cultura dirigida.
E o que dizer da cultura, das artes, da formação estética do homem na atual sociedade de massas em plena rebelião reivindicatória, segundo previu o pensador espanhol José Ortega y Gasset[3] desde o primeiro quartel do século XX.
A chamada “cultura das massas” se refere, especialmente, àquelas manifestações inferiorizantes da cultura, que predominam no mundo atual: o sensacionalismo jornalístico, a literatura pornográfica, os filmes de perversão sexual, os maus programas comerciais de Rádio e TV etc., baseados em motivos puramente econômicos, cujo objetivo não é comunicar cultura, mas induzir as “massas” ao consumo, explorando o mau gosto e o primarismo dos indivíduos através de estímulos manifestados pelos meios eletrônicos de comunicação, a serviço de empresários e gerentes inescrupulosos, que exploram a arte e a cultura em benefício, exclusivamente, do lucro e não da criatividade, humanismo e gozo espiritual do homem. Salvo as exceções, é claro!
As manifestações inferiores da cultura massificada, segundo o historiador e pensador argentino Lorenzo Luzuriaga[4], tendem a conspurcar o gosto e a baixar o nível de aspiração estética e artística dos consumidores da cultura, criando, assim, um problema de difícil solução, porque: a) não há meios legais de coibir a proliferação da cultura brega; e b) se os houvesse, poder-se-ia cair nas vielas da “cultura dirigida”, do estadismo cultural, o que seria profundamente antidemocrático.
A “cultura das massas” é, com efeito, de fácil exploração política e comercial nas sociedades com crescentes índices de analfabetismo e decrescentes níveis de educação básica, como é o caso do Brasil.
A cultura mais sadia é, sem dúvida, a que brota do sentimento popular em sua criatividade espontânea e pura. O ritmo, a cadência, a música, o teatro, a dança, a literatura, o cordel, a modelagem, a pintura, o desenho e outras artes são “manifestações espirituais objetivas” do ser humano. Nascem com ele e, com ele, permanecem em estado potencial, aguardando condições propícias para o seu despontar, em consonância com as aptidões de cada pessoa.
[1] Reissig, Luis. A era tecnológica e a educação. FGV.
[2] Dicionário de Pedagogia. Rio, op. Cit.
[3] O mundo e, no seu contexto o Brasil, vive hoje, agravado, o fenômeno das massas rebeladas e reivindicantes, tal como antevia aquele filósofo já na década de 20, do século XX, em seu livro “Rebelião das Massas”.
[4] Luzuriaga, Lorenzo. Pedagogia social e política – Editorial – Buenos Aires.